O arquiteto José Pedro Sousa, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, é um dos 18 pensadores e o único português a integrar a mesa redonda para o Novo Bauhaus Europeu, um movimento que cruza ambiente, economia e cultura para projetar o nosso futuro comum de maneira sustentável. No momento em que emergimos de uma crise global, e perante os desafios das alterações climáticas, o mundo precisa de uma nova arquitetura, com “estratégias materiais e construtivas radicalmente diferentes e em sinergia com a natureza”. A cortiça, essa “singular convergência de qualidades”, encontra-se especialmente bem posicionada para responder ao desafio.
Uma das minhas primeiras memórias remonta à minha infância, recordando-me das paredes da cave que um tio meu decidiu revestir com aglomerado de cortiça expandida. O toque do material, o desenho da placagem que era rematada por umas ripas de madeira, a tonalidade e a acústica do ambiente, e o calor que retinha da salamandra existente, criavam uma atmosfera única naquele espaço. Então, ainda distante de me interessar pela arquitetura, o efeito da cortiça neste espaço não me deixou indiferente.
A viragem do século foi o momento em que se começou a explorar intensivamente o uso de tecnologias de CAD/CAM em arquitetura. Nessa altura, a par da emergência de novos materiais, a fabricação digital permitiu revisitar materiais de construção tradicionais, como a madeira ou o betão, e abrir novas possibilidades de desenho e de aplicação. Em 2003, nesse contexto, estava interessado em desenvolver o meu doutoramento em torno da exploração de tecnologias digitais com um material ou uma indústria onde essa inovação pudesse acontecer. Pelas suas propriedades físicas, valor ecológico e importância para Portugal, a cortiça surgiu naturalmente como o caso de estudo ideal para realizar esse trabalho. O facto dos arquitectos Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura terem aberto a possibilidade de utilização da cortiça como material exterior no Pavilhão de Portugal de Hannover em 2000, deu ainda mais força e importância a esta opção de investigação que, para acontecer, teve a felicidade de poder contar com a abertura e apoio da Amorim Cork Insulation desde o primeiro segundo.
Penso que aquilo que referi anteriormente sobre as minhas memórias ajuda a responder a esta questão. A cortiça é um material com características únicas que não deixa ninguém indiferente. O seu desempenho térmico e acústico foi comprovado empiricamente muito antes de qualquer ciência o poder demonstrar. A sua aparência transmite conforto e, com a ajuda das novas tecnologias de desenho e fabricação digital, pode ser personalizada para criar ambientes singulares do ponto de vista estético e funcional. Para além disso, nos dias que correm, a sustentabilidade do material e da sua indústria fazem da cortiça um produto da maior importância para os desafios que o mundo enfrenta. Aplicar cortiça nos edifícios e na cidade é uma forma eficaz de responder à necessidade crescente de incorporar a Natureza no ambiente construído.
Há 100 anos, o mundo estava a sair de uma crise provocada pela 1ª Grande Guerra Mundial e a Bauhaus surgiu procurando resolver os problemas através da convergência das artes e utilizando as tecnologias de então. Hoje em dia, novamente, o mundo atravessa uma crise global à qual é necessário dar uma resposta urgente. Tal como a Bauhaus original, a New European Bauhaus surge para dar esperança e projetar o nosso futuro comum através de um esforço coletivo entre todos, arquitectos, designers, artistas, cientistas, economistas ou simples cidadãos, em torno de um movimento que pretende ser, também, um projeto cultural. Apesar das evidentes analogias entre estes dois momentos, existem, também, diferenças claras. Por exemplo, os problemas ambientais de hoje exigem soluções que em várias medidas se afastam do preconizado no passado. Por exemplo, o betão e o aço que antes anunciavam a nova arquitetura daquela época, são hoje reconhecidos como parte importante dos problemas que enfrentamos. Precisando hoje, também, de uma nova arquitetura, as estratégias materiais e construtivas terão que ser radicalmente diferentes e em sinergia com a Natureza.
As alterações climáticas, e todos os problemas subsequentes, são uma ameaça para todas as formas de vida e regiões do planeta sem exceção. Contudo, apesar de enfrentarmos um problema comum, as soluções terão que ser específicas de acordo com as condições particulares de cada local, como o clima, os materiais ou a economia. Também neste caso, a New European Bauhaus é forçosamente diferente da original, a qual deu origem ao movimento moderno onde se preconizavam princípios universais para a arquitetura e o urbanismo que não foram frequentemente bem sucedidos. Neste contexto, é importante que Portugal, como qualquer outro país, participe nesta mudança e se faça ouvir, para que as medidas e as boas práticas se ajustem às diferentes realidades. Julgo que a forma como a nossa arquitetura soube adaptar pragmaticamente a influência do moderno às nossas condições locais, e que foi internacionalmente reconhecido como um “regionalismo crítico”, pode servir como um exemplo para iluminar o desafio complexo que temos em mãos.
Não destacaria uma qualidade, mas sim a singular convergência de diferentes qualidades num único material, e que fazem da cortiça um material muito equilibrado para a arquitetura. Considerando que as duas grandes forças que estão a moldar o presente e o futuro da indústria da construção são a descarbonização e a transformação digital, a cortiça, enquanto material 100% natural e versátil para ser abordada digitalmente, tem tudo para vincar a sua relevância. O revestimento e isolamento de edifícios, as coberturas ajardinadas, a mistura com outros materiais, a personalização e reutilização são alguns dos exemplos de aplicações que sublinham o valor da cortiça para o futuro da arquitetura.
A economia circular em torno da cortiça é uma história absolutamente extraordinária. Convocando a floresta, o clima, a biodiversidade e a cultura, o ciclo de vida associado à cortiça contempla processos muito completos de reciclagem e reutilização, que atravessam diferentes tipos de produtos e aplicações. Para além disto, em casos como a produção do aglomerado de cortiça expandido (ICB) usado na construção, a sua reciclagem pode dar origem a produtos de valor superior ao original, demonstrando oportunidades de upcycling. Neste contexto, não conheço melhor material que a cortiça para servir de modelo de inspiração para as práticas que têm que ser implementadas, não só na construção, mas na nossa forma de vida em geral.