Gerhard Schiesser nasceu na Áustria, mas sente-se metade português. A alma lusa ganhou-a aos 9 anos, quando, no rescaldo de uma guerra traumática, chegou a Santa Maria de Lamas, numa ação organizada pela Cáritas, e foi afetuosamente acolhido pela família Amorim. Relato de uma ligação profunda, que marcou a sua história pessoal e a história do grupo, atravessa alguns dos momentos mais marcantes da segunda metade do século XX, e, sete décadas depois, continua a dar frutos
Em 1948, Gerhard Schiesser foi uma das crianças austríacas a deixar o seu país à procura de uma vida melhor que sarasse as feridas da Guerra, numa ação solidária da Cáritas que trouxe duas mil crianças austríacas até Portugal. Uma viagem que Gerhard Schiesser descreve como uma “aventura” e que começou por levá-lo até ao porto de Génova, onde tomou um barco e seguiu até Lisboa.
Podia ter ido para outro país qualquer na Europa, mas foi a Portugal que veio parar, em concreto a Santa Maria de Lamas, onde a família Amorim o acolheu. Gerhard Schiesser tinha 9 anos. Depois de desembarcar em Lisboa, foi de comboio para o Porto, no grupo das mil crianças que seriam distribuídas por famílias de acolhimento no norte do país. Ser acolhido pela família Amorim foi puro acaso. Gerhard Schiesser tem outro nome para o que lhe aconteceu: “sorte”.
Nos períodos que passou em Portugal, Gerhard Schiesser criou laços inexpugnáveis com a família que o acolheu, e o país que se tornaria a sua segunda casa. Uma ligação umbilical, de afeto, reciprocidade e gratidão, que anos mais tarde viria a materializar-se também na esfera empresarial, numa fase decisiva para o grupo Amorim. A partir de final dos anos 60, Gerhard Schiesser assume um papel decisivo na internacionalização do grupo: ele é o homem de confiança eleito para liderar a filial austríaca da Amorim, fazendo, a partir dessa posição, a ponte com mercados do Leste europeu. Passados 72 anos, e com milhares de quilómetros pelo meio, Gerhard Schiesser continua a ser uma figura incontornável dentro do grupo, uma referência fortíssima, quer pelas suas qualidades humanas, quer pelo seu impecável perfil de gestor e negociador.
Regresso a 1948, quando tudo começou. Gerhard Schiesser ainda não tem uma década de vida quando chega a uma pequena localidade num país desconhecido, sobre o qual não sabia praticamente nada, nem mesmo umas palavras. Para trás, deixava as memórias duras da Guerra, de uma cidade ocupada, da escassez de alimentos, dos postos de controlo, dos quilómetros feitos a pé e até de estilhaços caindo muito perto do seu irmão. À sua espera, no Porto, estava o Padre José Ferreira, que o levaria até casa do Comendador Henrique Amorim, de quem Gerhard Schiesser dirá, num português perfeito, com um ligeiro sotaque e uma profunda convicção: “foi um segundo pai para mim. O meu pai, depois da Guerra, estava preso, e aquela era a minha família. Eu era um rapazito novo. Nunca tinha viajado. Nunca tinha comido laranjas, ou tangerinas”
Em Santa Maria de Lamas, Gerhard fica a viver na casa de família, a casa do fundador. Recorda as viagens que fazia até Lisboa, acompanhando o Comendador Henrique Amorim, ao volante do seu Citroen, e que demoravam meio dia.
Depois dessa primeira viagem organizada pela Cáritas, que resultará numa estadia de 11 meses, Gerhard Schiesser regressará três vezes a Portugal durante a sua juventude, a convite da família Amorim. Com os quatro irmãos da sua geração, José, António, Américo e Joaquim, cria fortes laços de amizade, que nunca esquecerá: “Foram tempos fantásticos”.
Em 1955, quando termina a ocupação da Áustria pelos aliados, Gerhard está na zona sob domínio russo e sente a alegria da libertação. Conclui os estudos universitários, formando-se em Economia, e casa com a mulher da sua vida, em 1963. Durante estes anos, apesar de viver a milhares de quilómetros de distância, em Viena, mantém viva a sua ligação a Portugal, sobretudo através do contacto com os quatro irmãos.
“Já em 1964 o Américo fazia muitas viagens para fora de Portugal para vender a cortiça” recorda Gerhard “Foi aí que me contactou, para saber se eu não queria vir para Portugal. Eu disse-lhe que acabava de me casar, que tinha a minha vida ali em Viena, o meu pequeno apartamento, mas ele convenceu-me, e acabei por vir. A minha avó emprestou-me o dinheiro para a viagem, e no final de 1964 viemos para Portugal, onde comecei a trabalhar na Corticeira Amorim, na parte de exportação, para trabalhar com os países que falavam a língua alemã, como a Alemanha, a Holanda, a Suíça, a Áustria”.
A família Schiesser instala-se perto de Espinho e é aí que nasce Gunther, o filho do casal. São tempos muito felizes para os Schiesser, que recorda com estima. “Na altura a Amorim era uma fábrica muito pequena, nada que se compare ao império que é hoje.” afirma “. Mas apesar disso, já tinha nessa altura o Américo Amorim que tinha essa vontade de crescer. E também o António Ataíde que ainda hoje é o meu melhor amigo português”.
“Em 1965 houve uma situação política. Uma resolução da ONU colocou Portugal numa espécie de lista negra, e muitos países, entre os quais os países do bloco soviético, a China e a Índia, deixaram de fazer negócios com Portugal. Foi aí que decidimos criar uma filial na Áustria”. Gerhard Schiesser, regressa a Viena, com a sua mulher e o seu filho de três anos, que falava mais português do que alemão. Com 100 mil xelins, fundam a primeira firma: Gerhard Schiesser Gmbh. Começam uma série de viagens pelos países de leste - “para vender cortiça eram precisos contactos” - nas quais Gerhard, muitas vezes acompanhado pelo próprio Américo Amorim, estabelece relações comerciais na Roménia, Bulgária, Jugoslávia, Hungria, URSS, Polónia, e mais tarde a China e a Índia.
Foram tempos inesquecíveis, e irrepetíveis. Gerhard Schiesser recorda, por exemplo, as viagens a Moscovo, onde, como qualquer estrangeiro em negócios na Rússia, os seus passos eram vigiados pelo KGB. “Gostaria muito de saber o que estava escrito nesses cadernos sobre a minha pessoa” confessa, entre risos.
Cada país era diferente, e cada país tinha uma história. Em alguns mercados era mais difícil penetrar, e demorava 3 ou 4 anos até se conseguir vender a primeira tonelada de cortiça. “Em todos os países, para se conseguir abrir as portas, era necessário ter um bom amigo e ser um bom negociante. Muitas vezes levávamos produtos que não existiam nesses países. Fazíamos listas. Desde pasta de dentes a uma garrafa de whisky. Colocávamo-nos em situações perigosíssimas, se se soubesse que um cidadão romeno ou polaco tinha estes contactos com cidadãos estrangeiros. Mas no fim ganhámos muita confiança por parte destas pessoas. A confiança fazia tudo nestes países”, recorda.
Assim descritas, estas viagens parecem de facto uma aventura, mas ouvindo Gerhard Schiesser fica claro que se tratou de uma aventura alicerçada na sensatez, na retidão, na elegância e na diplomacia.
Em 1970 Gerhard Schiesser viaja pela primeira vez até à China. Depois de três anos a tentar obter um visto, chega a Xangai, num voo da Pan American, numa viagem com escalas mirabolantes, passando pela Grécia, Beirute e Paquistão. Fica 11 dias na China, e apercebe-se da forma como os negócios são contaminados pela política. Para os chineses nos anos 1970, os americanos eram um “tigre de papel”, os portugueses eram “colonialistas”, e só restava a possibilidade de fazer negócios com os austríacos, identificados com uma muito recomendável neutralidade. Estava resolvido o problema: “Vendemos cortiça ‘austríaca’ aos chineses” recorda Gerhard Schiesser “No último dia tivemos uma encomenda de 57 toneladas de cortiça em pranchas, e foi para mim uma surpresa porque eu já não tinha nenhuma esperança de sair de Xangai com um negócio feito”.
A paragem seguinte foi a Índia, onde Gerhard Schiesser negociava com a State Trading Corporation, uma empresa estatal, ficando a conhecer de perto as fábricas onde se trabalhava a cortiça, sobretudo para fazer placas de cortiça aglomerada.
Em 1974, com o 25 de Abril, houve grandes mudanças. Gerhard Schiesser regressa à Áustria, despede-se de Américo Amorim que lhe oferece uma garrafa de vinho do Porto, o filme do seu casamento, e comovido, espera por dias melhores, em que possam voltar a reunir-se sem temer pela sua liberdade.
Em 1977, novo episódio histórico: a Amorim consegue trazer os primeiros navios soviéticos ao porto de Leixões, para carregar cortiça, uma notícia que fez manchetes dos jornais. Era uma situação impensável durante o Estado Novo. O transporte de mercadoria era feito através de Marrocos e a ideia de ter navios soviéticos num porto português era inconcebível. Mas vivia-se outros tempos. Gerhard Schiesser confronta os seus interlocutores russos, que lhe diziam ser isso impossível por Portugal ser um país colonialista. “Agora já não somos colonialistas, somos gonçalvistas”, argumenta Schiesser, e dá a garantia de que a tripulação estará em total segurança. O navio é carregado com 1000 toneladas de cortiça, e volta a zarpar.
Nos anos 1980, a Perestroika introduz, de novo, grandes mudanças. Obriga a filial austríaca a reestruturar-se e a vender a cortiça de outra maneira, e abrem-se escritórios na China, na Rússia, na Roménia.
Em 1984, o Presidente Austríaco vem a Portugal em visita oficial e quer conhecer por dentro uma indústria tipicamente portuguesa. A cortiça é a resposta óbvia, e na visita à Amorim Gerhard Schiesser é o anfitrião, explicando-lhe tudo sobre cortiça.
Em 1989, a história pessoal de Schiesser volta a cruzar-se com o pulsar do mundo. Gerhard Schiesser está na China quando se dá o episódio de Tiananmen. É a sua mulher, a partir de Viena, que lhe relata os acontecimentos, e Gerhard imediatamente pega numa bicicleta para se dirigir ao centro de Pequim e testemunhar a história em direto. Aí, um amigo aconselha-o a sair o mais rapidamente de Pequim pois o desfecho era imprevisível. Pagando uma pequena fortuna em dólares, Gerhard consegue chegar ao aeroporto e apanhar o avião para Viena, onde é o primeiro austríaco a regressar da China naqueles tempos convulsos. Fazem-lhe uma entrevista pela rádio, que hoje recorda entre risos. Nesse mesmo ano, viaja com os irmãos Amorim até ao Brasil, para assistir ao Carnaval do Rio, um convite que irá retribuir mais tarde, convidando António Ataíde para o baile da Ópera de Viena.
A vida corre, e os negócios também, até que chegamos a 2004, um ano marcado pela renovação. É nesse ano que o seu filho toma conta da empresa, algo que faz com muito gosto e entusiasmo, em estreita colaboração com António Rios de Amorim. Em Portugal e em Viena, é a nova geração que assume a liderança.
Em 2010 Gerhard Schiesser recebe a Ordem do Infante D. Henrique, pelas mãos do Embaixador de Portugal em Viena. A condecoração, logicamente, enche-o de “orgulho e prazer”, e assim o “rapazito austríaco” que um dia foi acolhido na casa de Henrique Amorim, torna-se, ele próprio, Comendador.