Norberto, patriarca da família Silva, tem hoje 94 anos. “Custa-lhe falar ao telemóvel”, explica Ana Maria, a filha mais nova. A destreza e o vigor físico de outrora, com que “carregava carros, levando fardos de cortiça às costas”, foi substituída pelo vigor das palavras que os seus filhos e netos usam para contar a sua história. Começou no grupo com 11 anos, em 1937. Saiu, voltou anos depois e aqui ficou, até à reforma. Norberto Pai, chamemos-lhe assim, era “encarregado no estaleiro” e a única fonte de rendimento de uma família com cinco filhos. Quatro Marias, “porque antigamente era tudo Marias”, e um Norberto, chamemos-lhe filho.
Primeiro nasceu a Maria Clara, depois veio o Norberto, o filho, seguiu-se a Maria Filomena e a Maria Fernanda, filhas do meio e, por fim, a Ana Maria, a mais nova. Sobre o Norberto Pai todos sublinham que sempre foi homem de “falar pouco”, “era muito trabalho, ele chegava a casa tarde”. “Fala mais agora, ele agora fala muito”, diz Maria Fernanda, sobre os tempos em que o seu pai “levava a comida na panela e aquecia na água da caldeira”, de quando “iam buscar a cortiça e até atravessavam o rio, no Montijo, e o barco vinha tão carregado que eles pensavam em meter os fardos ao rio, com medo deste afundar”.
Norberto sempre foi “bom pai e muito boa pessoa.” Foi e é “muito bom para os filhos, para os netos” e, mesmo na fábrica, “ninguém tem que dizer”. Ainda assim, de vez em quando “lá falava alto”, diz Maria Clara, “mas diziam que era só da boca para fora, que era boa pessoa”. Dos cerca de 50 anos de trabalho do pai no grupo, o balanço é positivo, diz Filomena, “coisas há, mas a parte positiva ultrapassa a negativa”. Ainda “há uns meses”, conta Clara, “ele dizia ao meu filho e ao meu irmão que queria muito falar com o Dr. António, que ele foi muito amigo dele”. No grupo, aos poucos, “meteu lá os filhos, que era coisa que na altura ele não queria muito, porque tinha medo que acontecesse alguma coisa na empresa e estava lá a família toda.”
Maria Clara foi a primeira filha de Norberto a entrar para a Amorim. “Foi no ano de 77, tinha 14 anos, ia fazer 15, entrei a 16 de maio”, recorda, “vai fazer agora 43 anos”. Começou “no setor dos blocos, que é onde agora se fazem os convívios de Natal”. Hoje trabalha na Amorim Top Series, “vai fazer 23 anos”. É a única dos quatro irmãos que não está na Amorim Cork. Nos almoços e jantares de família, o trabalho é, por isso, assunto recorrente. “A gente vai falar do quê?”, brinca Filomena, “uns falam de uma coisa, outros de outra, mas é quase sempre de trabalho, mesmo que a gente queira fugir, não consegue, há sempre histórias”.
Norberto Silva, o filho, foi o terceiro elemento da família a entrar para a Amorim. “Trabalho aqui no grupo há 42 anos, entrei a 5 de janeiro de 78”, tinha 14 anos, mas “com 13 já fazia muito trabalho”. Só fez o 4.º ano, “era a lei daquele tempo”. Ao longo dos anos foi crescendo e aprendendo. “O meu pai dizia para eu abrir os olhos. Um dia eles vão escolher os melhores dos melhores. Era verdade.” Entrou para os blocos, para o lugar da irmã Clara, que se mudou para a fábrica, onde esteve “ali durante um ano, na frente da rabaneação”. “Tinha gosto por aquilo, gostei de trabalhar ali na cortiça, foi um bom princípio”, acrescenta. Em 1980, passou para a serralharia, onde ainda hoje continua “na parte da manutenção”.
Dezanove anos depois, passou a ter uma equipa a seu cargo. Viajou, esteve “um mês na Austrália a montar uma fábrica”, esteve na Tunísia, e acompanhou toda a evolução tecnológica no mundo das rolhas, mas são sobretudo as memórias dos primeiros tempos que recorda. Umas vezes, “saía para o Alentejo no dia anterior, às 8 horas, e chegava lá às 3 da manhã. Eu ficava na fábrica de Abrantes sozinho. Deitava-me em cima de umas redes à espera que o dia nascesse.” Outras vezes, “ia com o Sr. José Amorim, às 6 da manhã. Quando eram 8h30, 9 horas estávamos lá. Íamos a conversar. Lembro-me que ele me pedia muitos cigarros. Ele fumava muito. Ele sabia que eu fumava. Chegávamos a Abrantes, parávamos e íamos tomar o pequeno almoço.
Depois de Norberto, seguiu-se a Maria Fernanda, que chegou ao grupo em 1980, tinha 14 anos. “Vai fazer 40 anos que lá ando”. O seu sonho era ser cabeleireira, conta, chegando a pensar seriamente na carreira, mas o pai apontou-lhe outro caminho. “Tirei o curso e andei a fazer isso em part-time, na altura era para sair da Amorim e ele aconselhou-me a não sair”. “Pensa bem, pensa bem, dizia, e eu realmente pensei e hoje agradeço”. Começou no setor de tratamento das rolhas, “onde a rolha era tratada, marcada, embalada em caixas e ia para o cliente”. Desses tempos humildes, recorda, sorrindo, que não havia tão pouco transporte. “A gente aproveitava a boleia dos camiões que iam buscar a cortiça para nos levarem para casa. Às vezes éramos muitos, não cabíamos na cabine e íamos atrás na carroça, mas íamos todos contentes”. Mais tarde, quando o setor de tratamento mudou de local, Fernanda ficou na colmatagem, onde permanece até hoje. Depois do seu turno, que termina às 14 horas, vai para casa cuidar do Pai.
Em 1981, um ano após a entrada de Fernanda, chega ao grupo a Maria Filomena. Tinha 16 anos. Esteve dois anos noutra empresa, mas “todos os dias chateava o meu pai porque queria ir para os Amorim”. Mena, como é conhecida na empresa, entrou para a Escolha e aí ficou. “Foi a arte que aprendi e gosto daquilo que faço.” Foi na empresa que conheceu Fernando Soares, o seu marido, que também trabalha há 40 anos na Amorim. Ter conhecido Filomena “é o ponto alto do meu trajeto aqui dentro da empresa”, conta Fernando. O namoro “era sempre às escondidas, nas horas dos intervalos”, e até hoje recorda a sua primeira interação com o Norberto Pai, que se tornaria seu sogro. “Há momentos caricatos, a primeira vez que cheguei aqui, fui ver uma avaria à caldeira e, na minha ingenuidade, desliguei-a. Vem o Sr. Norberto e tratou-me do piorio porque eu desliguei aquilo, por ter feito asneiras”.
Ana Maria, a irmã mais nova, foi última a entrar para o grupo, em 1983, com 14 anos, mas aos 12 “já vinha para aqui trazer os almoços para as minhas irmãs, para o meu pai, para o meu irmão.” Entrou logo para a Escolha, “que na altura era à mão, numa banca, e depois passou para as máquinas de passagem”. Passou pela Amorim 2, onde esteve mais 10 anos. Depois, voltou para a Amorim Irmãos, onde “nessa altura, as bancas já tinham acabado”. Tudo foi evoluindo e do passado, diz, “fica sempre um restinho de saudades, não é?”
Mas o presente constrói-se pelas mãos de Norberto Xavier, filho de Norberto Filho, e Jorge Guedes, filho de Maria Clara, netos de Norberto Pai. São a terceira geração da família a trabalhar no grupo. Norberto Xavier entrou em 2014. Hoje integra a equipa de controlo de gestão da Biocape.
Jorge, por seu turno, foi o último “Silva” a entrar no grupo, em 2017. Trabalha na Amorim Distribuição, mas pretende terminar o curso de contabilidade e administração que frequenta atualmente à noite.
É certo que para a família Silva nem tudo foram momentos bons. O incêndio nos anos 80 marcou os irmãos mais velhos e o genro, Fernando, “foi lá em baixo, onde havia o estaleiro, com todo o mundo envolvido ali, a tirar fardos”. Ana Maria e Maria Clara falam das mudanças de posto, do começo em lugares novos, dentro do grupo, onde tudo era desconhecido. Porém, para todos eles, pai, filhos e netos, o balanço é positivo e as boas recordações superam, de longe, as más. “Lembro-me sempre de coisas boas, não tenho coisas más”, sublinha Filomena. Ana Maria, por sua vez, destaca claramente uma data. “O que eu gostei mesmo foi quando eu recebi o relógio dos 25 anos. Fomos ali à casa grande, ao museu, e depois tivemos lá uma festazinha.” Trabalhar no grupo foi a única coisa que fez até agora, que “é quase uma família, é uma segunda família”.
São já longos os anos e a história da família Silva no grupo Amorim. Nesse tempo, a empresa cresceu, evoluiu. “Maquinismo, robôs, tecnologia, computadores”, enumera Maria Clara. “Foi uma roda que nunca mais parou”, comenta Norberto filho. “Nós estamos na origem disto, mas nós nem damos por ela. É engraçado.