Na arquitetura de Eduardo Souto de Moura, é evidente o fascínio pelos materiais, a sua beleza e autenticidade. Da escala doméstica aos projetos urbanos, a sua arquitetura é sempre um encontro entre inteligência e sensibilidade, atenta ao contexto, e trazendo um sentido histórico para o presente. Numa conversa luminosa, o arquiteto português, vencedor do Prémio Pritzker, revela …
Para mim a primeira ideia da cortiça é de uma rolha. O primeiro contacto que nós temos com a cortiça. São as rolhas. Em miúdo a abrir o frasco da lixívia, do azeite, do óleo…
Não. Nada. Ainda hoje tenho algumas dúvidas. Fundamentalmente (a cortiça) é rolhas. E aí é um material que ninguém o bate. Nada. É impossível. Os isolamentos temos discussões. O primeiro contacto que tive foi a rolha e é 100% eficiente. Não há discussão possível. Quem quiser discutir cala-se porque está provado há séculos que é assim.
Tenho uma memória, uma paramédica no Hospital de S. João, e quando estava doente ou doíam-me os dentes e ia ao hospital, lembro-me de ver o as escadas do hospital em cortiça. E eu disse: como é possível que a cortiça, que quando ponho as mãos numa rolha é mole, aguente o tráfego de milhares e milhares de pessoas aqui? Passados uns anos fui à Suécia. Fui contactado por um atelier norueguês para fazer o aeroporto de Lisboa. Eles fizeram o aeroporto de Gotemburgo em cortiça da Amorim. E se há sítio onde há um tráfego brutal é no aeroporto. Tem milhões de pessoas por dia e a cortiça portuguesa estava lá.
Já falámos do isolamento. Há um fator que descobri nos EUA quando entrei, talvez, na casa mais conhecida do mundo, que é a “Fallingwater House”, a Casa da Cascata do arquiteto Frank Lloyd Wright. Visitámos a casa e depois abri a porta e vi que os quartos de banho eram em cortiça colada nas paredes. Pus a mão para ver, e ao pôr a mão disse: isto deve ser uma maravilha estar a tomar chuveiro, encostar-me ao azulejo é frio. Isto tem um tato ultra agradável. Daí, depois quando a Amorim me pediu para desenhar um objeto em cortiça, eu desenhei um puxador. Porque lembrei-me dessa casa “Fallingwater”: pus as mãos nas paredes e era do mais agradável possível.
Foi em 2011 quando ganhei o Pritzker. Fui de manhã ver a casa e à noite ganhei o Pritzker…
Poder pode. Eu não sei se acho bem. Porque hoje usa-se e abusa-se da cortiça. Eu não acho graça nenhuma ter os telemóveis forrados a cortiça. Eu acho que a cortiça tem coisas objetivas e tudo o que é bom tem um campo restrito. Quando tudo dá para tudo, acaba por não dar para nada e eu não gosto disso. E é a defender a minha cortiça portuguesa. Eu vejo cortiça em tantas coisas. Vestidos de cortiça, carteiras de cortiça, telemóveis de cortiça, sacas de cortiça… acho que é um excesso.
No Pavilhão de Hannover começou-se no exterior. Foi uma sugestão, tinha havido obras que me impressionaram muito, com lâminas de pedra como se fossem xisto e depois com o tema, pensámos, porque não fazemos lâminas de cortiça? É um edifício feito a meias com o Siza. Fizemos. Correu bem. Tive um apoio extraordinário da Amorim na parte técnica. Inventamos um bloco, um aglomerado que podia ser de betão, um bloco de cortiça extraordinário.
No CCB eu queria fazer umas sete células para projetar sete vídeos. Precisava de sete espaços delimitados com blocos, tijolos. É evidente que achei que a cortiça era melhor, fazia isolamento, fazia a absorção e depois as pessoas para verem os filmes podiam sentar-se. É fácil de transportar e é fácil de montar. Então fiz a instalação toda em cortiça. A Amorim teve a amabilidade de me oferecer a cortiça para a exposição (depois recuperou, porque aquilo não se estragou). Foi agradável. Gostava de fazer uma referência à Amorim, que em tempo de mecenato é sempre impecável. Eu nunca pedi nada. Sempre que uso a cortiça a Amorim considera isso um mecenato. Em Portugal é raro. Em Portugal quase não há mecenato. As duas coisas que destaco da Amorim são a disponibilidade e o profissionalismo. É uma empresa com um profissionalismo que não é muito normal em Portugal.
Fiz o puxador e o corrimão. Foi logo quando vim dos EUA e fiquei impressionado, conhecia a cortiça de maquetes, de tato, mas nunca a havia aplicado diretamente na arquitetura em que, inconscientemente, se toca e se usa (na casa dos quartos de banho). Fiquei impressionado e apliquei diretamente o material que vi pelo tato – o corrimão e o puxador. Não sei se está a ser comercializado ou não. Eu gostava muito que fosse. Para além do mais acho-o muito bonito.
O pormenor é a cereja em cima do bolo. Boas ideias, o inferno está cheio de boas intenções. Concretizar as ideias e praticá-las não é fácil. É muito difícil. Praticá-las depois com coerência no todo e no particular é muito difícil. E, portanto, o clique, a diferença, faz-se certamente no pormenor.
Claro que a cortiça é sustentável, mas hoje em dia tudo é negócio. Portanto, o preço manda sempre. É horrível isto, mas é a realidade. Não vale a pena sermos românticos e apaixonamo-nos por coisas… o cliente diz não, eu quero este, é o mais barato. Ponto final. Eu queria saber, quando falo de sustentabilidade, não é das qualidades químicas e físicas do material. É o índice económico de aplicação dele.
Vou ser sincero e honesto. Posso estar errado, mas a cortiça não é para ficar escondida. É para ficar à vista. É uma pena, os sobreiros e aquelas cascas quando atravesso o Alentejo e não estou a ver o sobreiro rebocado com cimento, portanto essa imagem é uma coisa que me repudia. Acho a cortiça bonita, pela cor, pela textura, pela naturalidade e não é por acaso que o Pavilhão de Hannover foi um êxito. Primeiro é bonita e depois dá-lhe uma identidade. Agora depois temos de estudar a eficácia disso. Uma coisa é estarmos apaixonados pelo material…Não acha uma pena um material que leva 45 anos a fazer-se, ser colado a uma parede e depois rebocado por cima? Tem de ser muito bem racionalizado.
Eduardo Souto de Moura nasceu no Porto, em 1952. Formou-se em arquitetura pela Escola de Belas Artes do Porto, e iniciou a sua carreira colaborando com Álvaro Siza, quando ainda era estudante. Em 1981, recém-formado, vence o concurso para o Centro Cultural da Secretaria de Estado da Cultura no Porto, e inicia a sua atividade de forma independente. Entre os seus projetos mais conhecidos, destacam-se a torre Burgo, no Porto, o estádio municipal de Braga, e a Casa das Histórias – Paula Rego, em Cascais.
Para além da sua prática como arquiteto, Souto de Moura é professor na Universidade do Porto e professor convidado em Geneva, Paris-Belleville, Harvard, Dublin, ETH Zurich e Lausanne. Em 2011 Souto de Moura torna-se o segundo arquiteto português a receber o Prémio Pritzker, e em 2018 recebe o Leão de Ouro da Bienal de Veneza.
“Para mim, a arquitetura é uma questão global. Não há arquitetura ecológica, não há arquitetura inteligente, arquitetura sustentável: só há boa arquitetura. Existem sempre problemas que não podemos negligenciar: por exemplo, energia, recursos, custos, aspetos sociais – a todos devemos sempre prestar atenção”