São mais de sete décadas no grupo, vividas com dedicação, paixão pela cortiça e respeito por quem está no terreno. Um percurso marcado por episódios inesquecíveis, caricatos, emotivos ou engenhosos, que António Ferreira de Amorim recorda numa conversa cheia de sabedoria e confiança no futuro.
António Ferreira de Amorim, o terceiro filho de Albertina e de Américo Alves Amorim, começou a trabalhar no grupo ainda na primeira metade do século XX. Corria o ano de 1949 e tinha acabado de fazer a tropa em Tavira, onde fora Cabo. Antes, com 14 anos, já tinha tido um primeiro contacto com o negócio familiar, enquanto estudava no Colégio S. Luís em Espinho e, depois, na Escola Académica do Porto, porque sentia curiosidade em saber o que se passava atrás das portas da Amorim & Irmãos.
Dos quatro irmãos empenhados no desenvolvimento do grupo (José, António, Américo e Joaquim), era o que mais privava com os operários, com quem convivia com elevado sentido de humanidade. Foi sempre um homem de ação, do terreno. Alguém habituado a ouvir e a falar. Alguém que gostava de sentir o pulso da empresa a partir de dentro. Ainda hoje é assim.
“Gostei sempre de trabalhar na fábrica; gosto do ambiente da fábrica, junto dos trabalhadores fabris.” E recorda: “Acompanhava todas as cargas e descargas; antigamente, os fardos de cortiça e de aparas eram pesados um a um e tomava-se nota dos pesos. Quem vendia e quem comprava anotava os pesos fardo a fardo e só depois é que eram levados para os armazéns, ou então carregados para exportar por Vila Nova de Gaia, Matosinhos ou por Lisboa.”
Aliás, a propósito da exportação da matéria-prima, António Ferreira de Amorim recorda com graça os tempos em que era proibida pelo Estado: “Houve uma altura em que não podíamos exportar, mas podíamos exportar de Espanha. Então fazíamos os papéis dentro do Porto de Leixões. Os documentos que acompanhavam a cortiça tinham como origem Vigo, mas tinham saído aqui de Leixões. Para nós era mais prático ir para Leixões do que ir para Vigo. Fazíamos aqui os papéis como se saísse de Vigo. E eu não lhes dava nada… eles tratavam-me bem, não lhes custava nada fazer o papel e acabou o assunto”.
São as muitas as memórias gratas, que António Ferreira de Amorim relata num recuo histórico estratégico com enorme vividez: “Antigamente, os barcos entravam na barra do Douro e atracavam em Vila Nova de Gaia, onde embarcávamos os produtos; não havia contentores – os materiais eram embarcados no porão e no convés dos navios.”. Depois de o ouvir falar, não restam dúvidas. Se hoje estivesse à frente de alguma fábrica, confessa, seria o responsável pela logística: “sempre gostei particularmente dessas funções, porque gosto de ver as pessoas a mexer e a ajudar e darem a opinião delas”.
É profundo o respeito que António Ferreira de Amorim tem por aqueles que fizeram ou fazem parte do grupo e que, com a sua dedicação e compromisso, deram tudo para levar a cortiça mais longe. Cabia-lhe o dom da organização, rigor e eficácia que permitiu sempre, dentro das empresas, a paz e a tranquilidade social que acabariam, em certos momentos, por valer mais que do que toda a riqueza do mundo. Por isso, quando recua até à memória mais forte que tem da sua passagem pelo grupo, são sempre as pessoas que aparecem em primeiro plano: “Há alguns anos, o avanço tecnológico permitiu que fossem desenvolvidas máquinas eletrónicas de escolha de rolhas. Esta era uma tarefa especializada, desde sempre executada por mulheres e, na Amorim & Irmãos, tínhamos algumas dezenas destas mulheres - as escolhedeiras”, conta. “Algumas mulheres fizeram toda a sua vida profissional naquela fábrica; algumas trabalhavam lá desde crianças, com mais de 47 ou 48 anos de casa. A decisão de as despedir foi particularmente penosa. Apesar de terem recebido uma boa indemnização, fiquei muito triste ao vê-las sair pela última vez de Amorim & Irmãos; fiquei emocionado, mas a vida é mesmo assim. Temos de respeitar os trabalhadores e, quando estas contrariedades acontecem, temos de ser os primeiros a falar com eles, a explicar-lhes as razões e a procurar resolver as coisas a bem e com o mínimo de danos possível, compensando-os e agradecendo-lhes” afirma. “Foi o que fiz, embora me tivesse custado muito; falei com todas elas antes de saírem.”
Outras recordações são bem mais alegres. Por exemplo, o momento da criação da Corticeira Amorim, atualmente Amorim Cork Composites, em 1963. “Nem queria acreditar, quando avançamos com as obras, para poder transformar em Portugal as aparas e refugos de cortiça, que até essa altura exportávamos.” relata, com emoção. “No dia em que vi os moinhos a triturar as aparas e a fazer granulados, para mim foi um sonho tornado realidade. E isto só foi possível graças à capacidade e ao trabalho do Tio Henrique Amorim, dos meus irmãos Zé, Américo e Joaquim e também ao meu empenho pessoal.”
Foram momentos empolgantes, mas também exigentes, em que se trabalhavam horas a fio para levar a empresa a bom porto. “Nessa altura, trabalhava de dia e de noite. Tínhamos dois ou três encarregados que só faltava dormirem na fábrica - o Sr. Evaristo, o Alexandre, o Serafim e o Zé Eletricista”, recorda. No código genético da Amorim Cork Composites ficaram gravados “o esforço e a vontade do pessoal da fábrica, do Tio Henrique e de nós, os quatro irmãos, com mais 10 ou 11 trabalhadores do escritório.” Para concluir, deixa um aviso: “Têm que merecer esse esforço e vontade e fazer melhor que nós. Estou atento!”
Uma forma intensa de viver as conquistas do trabalho que nunca reclamou louros mesmo quando tal seria somente justo. Basta relembrar o novo APA (armazém de produtos acabados da Amorim Cork Composites) recentemente inaugurado que nasce, sobretudo, da sua inesgotável perseverança. “O APA tinha 4000 metros quadrados. Agora temos 12 mil metros quadrados. Antes nós carregávamos três camiões. Olhando ao desenvolvimento da Corticeira Amorim nós não tínhamos espaço para nada. Então tivemos de comprar. Hoje temos espaço para carregar oito camiões ao mesmo tempo. Foi a única hipótese de crescer. A produção obrigou-nos ao escoamento, tivemos que ampliar. Mas a ideia é de todos. Eu apenas via que estava atascado aqui e a única hipótese que tínhamos era para acolá.”
Com uma vida dedicada ao grupo, há sempre mais uma história para contar. Como refere António Amorim “muitas peripécias aconteceram, algumas caricatas, outras engraçadas, outras engenhosas...” É aí que recorda a história do seu tio, o Comendador Henrique Amorim, que passava uma boa parte do ano em Abrantes, ficando instalado mesmo em frente à estação de caminhos de ferro, de onde vigiava as cargas de cortiça. “Nesse tempo, a maior parte do transporte de mercadorias era feita através do caminho de ferro e não era fácil arranjar carruagens para trazer a cortiça. Mas o meu Tio, como ficava em Abrantes (e depois o meu irmão Zé), quase todas as noites convidava o chefe da estação para jogar cartas com ele, lá na pensão; e, entre umas conversas e umas jogadas, lá ia conseguindo que o chefe da estação lhe arranjasse mais umas carruagens para poder carregar os fardos que preparavam na fábrica em Abrantes.”
Seguiram-se décadas de grandes desafios e trabalho: um período de grande crescimento e diversificação da atividade, com crescentes níveis de produção e de exportação para clientes nos quatro cantos do mundo.
António Ferreira de Amorim realça com visível orgulho e afeto a unidade e a cooperação entre os irmãos: José, o mais velho, responsável pelo aprovisionamento da matéria-prima, ainda hoje, aos 95 anos, é a pessoa que mais conhece e sabe da cortiça e do montado; Américo, a figura de proa da terceira geração, dotado de uma visão e tenacidade singulares cuja atuação alterou radicalmente a fileira da cortiça em Portugal e no mundo. António contribuía – com o cuidado e entusiasmo que lhe são caraterísticos – de forma relevante para a definição e implementação da estratégia, acompanhando em particular a criação e consolidação das instalações fabris, auscultando e zelando pela implementação das melhores práticas de produção e de segurança.
A cooperação entre todos e a importância dos laços de família são uma constante nas recordações de António Ferreira de Amorim. “Recordo os tempos em que almoçávamos todos os dias na Casa do Fundador e aproveitávamos para falar de negócios: a tia Rosa só melhorava a ementa quando tínhamos clientes estrangeiros. Nessas alturas, fazia dois ou três tipos de sopa e, pelo menos, dois pratos: um de peixe e outro de carne – eram dias fartos! Nos outros dias, a refeição era simples e quase igual à que era servida na cantina da fábrica.” E, emocionado, salienta: “Recordo com saudade muitos dos trabalhadores que já morreram e com quem trabalhei e passei bons momentos. Recordo com muito afeto as minhas Tias Ana e Rosa, ambas muito exigentes, mas também afáveis e atentas.”
E porque as memórias são como as cerejas, surge um novo episódio: “Antigamente nós enchíamos os sacos de rolhas à mão, diretamente de um monte de rolhas. O Tio Henrique, uma das vezes, começou a encher e a misturar as rolhas, metendo no saco algumas mãos cheias de rolhas de qualidade inferior. A Tia Rosa ao ver o Tio Henrique a fazer aquela aldrabice pregou-lhe um pequeno sermão: “Ouve lá! Se voltas a fazer isso e a misturar as qualidades, quem te enfia dentro do saco das rolhas sou eu!” Escusado será dizer que o Tio Henrique nunca mais fez aquilo; pelo menos, não à frente da Tia Rosa… E, naquele dia, andou o mais afastado dela que podia, pois não queria ser envergonhado à frente do pessoal.”
Aos 91 anos, António Amorim conserva uma juventude de espírito e uma humildade incríveis. “Acho que fiz bem o meu papel; gostei do trabalho que fiz; estou sempre disponível para apoiar e dar a minha opinião aos mais novos e ensinar-lhes o “a; e; i; o; u”, porque eles saem da universidade com muitos conhecimentos, mas a cortiça é um material muito especial e particular. Os mais novos precisam de aprender e ouvir os mais velhos e dar a opinião deles; se for a melhor, eu só tenho que bater palmas e agradecer; aos 91 anos, continuo a aprender com todos!”
Para os próximos 150 anos, deixa uma mensagem inspirada na sua própria vida, na proximidade e no trato com as pessoas: “Não sou muito de dar conselhos; gosto de falar; gosto de ouvir; gosto que todos participem das decisões e que transmitam a sua opinião,” reforça. “Mas, se me permitem, dou apenas um conselho: os técnicos, os engenheiros e os economistas têm de ouvir e falar com quem está no terreno; é importante dar valor aos trabalhadores; gosto que eles falem e digam o que pensam. É importante dar-lhes atenção e ouvi-los.”
O seu conhecimento profundo do negócio, das pessoas que todos os dias o tornam possível, e a sabedoria com que encara a vida fazem com que olhe com ânimo para o futuro: “A nova geração está preparada; está bem servida; tem muita visão e capacidade de trabalho”, salienta. “Os tempos que se vivem hoje não são fáceis; mas nunca foram fáceis. Os novos gestores têm de ser sempre os melhores e não olhar a sacrifícios e dar o exemplo. O grupo tem tudo para dar certo. E vai dar!”