O ambientalista Francisco Ferreira é uma das vozes mais influentes no combate às alterações climáticas em Portugal. Professor no Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT-NOVA) e investigador do CENSE (Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade), o atual presidente da organização não-governamental ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável é claro: só uma ação concertada, assente em compromissos internacionais e políticas coerentes, poderá salvar o planeta. No setor privado, a indústria da cortiça tem um papel crucial na transformação da paisagem florestal e na implementação da circularidade, defende o engenheiro.
Qual a sua primeira memória da cortiça?
É uma memória mista. Por um lado, o olhar para os sobreiros com a curiosidade extra de ver marcados uns números no seu tronco e a explicação recebida de que era uma árvore caraterística de Portugal e de onde era proveniente a cortiça, e por outro a sua presença nas rolhas e a arte de as retirar em cada garrafa de vinho que se abria em casa.
Da sua perspetiva, quais são as principais valências deste material?
Queria destacar três caraterísticas que me parecem absolutamente cruciais: ser um material cuja origem suporta um dos ecossistemas mais integrados entre a atividade humana e a riqueza natural que contém (o montado); ser um material que possibilita uma enorme e fácil circu-laridade desde que se construam os mecanismos para a sua recolha, envolvendo também uma ação de cada um de nós, o que não deixa de ser um aspeto positivo em termos de sensibilização e participação; e ainda o papel que a cortiça tem como material capaz de reter de forma eficaz e permanente carbono, um requisito fundamental na mitigação das alterações climáticas.
A ZERO foi criada em 2015 com o objetivo de defender e promover o desenvol-vimento sustentável em Portugal. Desde então, quais foram as principais conquistas?
Há muitas conquistas a registar e a mais relevante é que a ZERO, após este curto espaço de tempo, é já umas das principais vozes credíveis e influentes junto de políticos, empresas e da população na área da sustentabilidade. A ZERO foi pioneira na exigência de um roteiro para a neutra-lidade carbónica, no consequente encerra-mento das centrais a carvão e na promoção das renováveis, mas também numa visão crítica e consistente sobre as verdadeiras necessidades de promoção de uma economia circular. A promoção de uma economia do bem-estar, da qualidade de vida das populações, e de um uso suficiente e eficiente dos recursos têm estado na primeira linha de atuação e alerta. Ao mesmo tempo, temos tido influência
na promoção do capital natural e na preservação de várias áreas relevantes em termos de conservação da natureza.
Estamos em plena emergência climática. No curto prazo, quais diria serem os principais desafios que se colocam a Portugal?
Relativamente às alterações climáticas, quer no que respeita à redução das emissões de gases com efeito de estufa, quer no que respeita às questões de adaptação, os principais desafios de Portugal são simulta-neamente políticos e técnicos. Precisamos de muito mais energia renovável, em particular de origem solar, mas respeitando equilíbrios na ocupação do território, paisagem, conservação da natureza, partici-pação das populações, entre outros aspetos. Ao mesmo tempo, temos de fazer uma fortíssima aposta na eficiência energética, principalmente nos edifícios. Tem de haver uma articulação entre os diferentes níveis de atuação, da escala europeia à ação dos cidadãos a título individual, com uma forte ênfase à escala municipal, onde para além do edificado, a mobilidade deverá ser também uma prioridade de atuação. Mas, acima de tudo, temos de ter políticas coerentes, que rumem no mesmo sentido e não sejam contraditórias nos resultados.
Em termos de eixos de ação para inverter a situação, na sua opinião quais seriam os prioritários?
Olhando, e acreditando, naquilo que é a maior e mais detalhada análise científica apresentada pelo Painel Intergoverna-mental para as Alterações Climáticas, no início de agosto, sobre a origem e as consequências das alterações climáticas, temos de reconhecer, sem quaisquer hesitações, que mantermos a progressiva acumulação de gases com efeito de estufa na atmosfera será catastrófico e devastador, principalmente para aqueles que menos recursos têm para se adaptar. Nos últimos tempos, as cheias na Alemanha, a seca em Madagáscar ou as ondas de calor no Canadá são sinais que devem ser lidos no contexto das alterações climáticas. Não foi de forma alguma leviana que o secre-tário-geral das Nações Unidas nos disse que o documento apresentado é um «cartão vermelho» para o planeta. O mais importante são os compromissos internacionais, em particular as novas metas de redução que serão discutidas e aprovadas na próxima conferência em Glasgow, em novembro deste ano. À escala europeia, o pacote «Preparados para os 55», na sequência da aprovação da Lei Europeia do Clima que prevê uma redução em 55% das emissões entre 1990 e 2030, é um elemento fundamental. Mesmo que aquém do necessário de acordo com as associações europeias do ambiente que defendem uma redução de 65%, com uma antecipação da neutralidade climática de 2050 para 2040. Depois, é fundamental a implantação à escala nacional da legislação que está a surgir com alguns eixos vitais: do lado das emissões, a aposta nas energias renováveis e numa mobilidade sustentável, a eficiência nos edifícios e uma muito maior circularidade da economia apostada na prevenção; do lado dos sumidouros de carbono, mais floresta, resiliente e resistente aos fogos rurais, e um olhar integrado onde a conservação da natureza e a retenção de carbono sejam objetivos comuns a prosseguir.
Em concreto no setor florestal, o que está a ser feito em Portugal e o que precisa ainda de ser feito?
O Programa de Transformação da Paisagem contém os ingredientes necessários para a confeção de uma boa política pública para a área florestal. Porém, tudo depende de uma boa operacionalização das Áreas Integradas de Gestão da Paisagem, principalmente da forma como serão gastas as verbas previstas no Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), e se os modelos de gestão adotados gerarão rendimentos para os proprie-tários aderentes. Para já, e até agora, vimos apenas as coisas a começarem ao contrário: ainda não temos os Planos de Reordena-mento e Gestão da Paisagem elaborados, que deveriam planear e programar a trans-formação da paisagem em territórios de floresta vulneráveis, definindo uma matriz de transição a médio-longo prazo suportada num modelo de financiamento que assegura a sua implementação. Mas já estão submetidas candidaturas para a constituição de Áreas Integradas de Gestão da Paisagem.
De que forma podem o montado e o setor da cortiça ser exemplos/drivers da defesa do desenvolvimento sustentável?
O setor da cortiça não pode nem deve deixar de participar na transformação da paisagem em territórios de floresta vulneráveis, onde o sobreiro tem um enorme potencial de expansão, ampliando a sua presença em regiões mais favoráveis em termos climáticos. Sendo uma espécie autóctone, ainda para mais com elevado interesse económico para os proprietários rurais, faz todo o sentido que o setor da cortiça se empenhe o quanto antes numa política dirigida ao minifúndio. A começar por criar incentivos à produção de plantas em viveiro, e por estudar modelos de inves-timento com base na gestão agregada, que possam tornar o sobreiro parte da solução para os problemas de valorização dos territórios mais vulneráveis aos incêndios.
O princípio da circularidade é parte essencial do desenvolvimento sustentável. Qual o papel das empresas na ativação deste princípio e como se articula com a sociedade em geral?
As empresas têm um papel absolutamente fundamental no funcionamento e no atingir dos objetivos da economia circular, mas em muitos casos não têm assumido as devidas prioridades. O aspeto principal, e mais importante da circularidade, é o design do material para as suas diversas utilizações, que deve garantir uma quantidade suficiente, durabilidade e capacidade de reutilização e reciclagem. Sem dúvida que a jusante temos de garantir a capacidade de reintrodução dos materiais novamente no fluxo com a menor energia e degradação possíveis, mas se a prioridade for colocada na reciclagem e não na prevenção é uma oportunidade perdida. Tem sido muito difícil atingirmos objetivos ambiciosos, e até mesmo previstos na legislação, nomeadamente porque não existem incentivos e/ou custos económicos para os cidadãos reintegrarem os materiais (dos plásticos à cortiça, passando pelo papel e cartão, vidro e muitos outros). Não basta a sensibilização para conseguirmos metas mais ambiciosas na gestão dos materiais e da energia. E nesta área o desempenho das empresas é realmente crucial, da conceção dos produtos ao funcionamento de todo o ciclo.